domingo, 13 de dezembro de 2015

O MEU PRESÉPIO

O presépio, essa admirável criação de S. Francisco, deu origem a uma curiosa discussão, sobretudo entre os autores de presépios italianos. Diziam eles – e com razão – que no presépio, nascido em 1223, em Greccio, no interior da Itália, devia caber também o mar. E isto porquê? Porque o presépio é universal. Deram-lhes razão os franciscanos desse tempo, dizendo que nele cabe il mundo nel suo ordine intero, todo o mundo por inteiro. E foi por isso também que o poeta galego Álvaro Cunqueiro escreveu um poema para ser cantado na noite de Natal, que rezava assim:

São José tinha medo

Que o Menino fosse marinheiro

E saísse um dia p’lo mar fora

Embarcado num veleiro.

Não foi o Menino Jesus, mas fomos nós, embarcados em caravelas e naus pelos mares fora, levando sempre, no nosso coração de marinheiro português, um presépio. Presépio que espalhámos por todo o mundo e todo o mundo acolheu, tornando-o, assim, verdadeiramente universal. O pintor Grão Vasco, no séc. XVI, fez de um índio do Brasil um Rei Mago e um dos presépios que para mim tem mais luz é o meu presépio todo negro que me lembra o meu Natal na Guiné.

Por tudo isto, o meu presépio tem três mandarins chineses, de louça de Cantão. Comprei-os nesta cidade e trouxe-os para Macau, cidade que foi e é do Santo Nome de Deus. E antes de viajarem comigo para Portugal, levei-os à Igreja de S. Domingos a rezar a Nossa Senhora do Ar. O meu presépio tem três mandarins chineses. Vejo-os a andar apressados, no seu passo miudinho, em direcção à gruta do Deus Menino. Querem chegar antes de 6 de Janeiro. Querem chegar primeiro que os Reis Magos.

Vamos nós também com eles a Belém. Vamos nós, mais uma vez, com o nosso coração de marinheiro português, adorar o Deus Menino ao presépio que Deus fez.

                                      Um Santo Natal



Presépio que espalhámos por todo o mundo...Presépio Tailandês

terça-feira, 26 de novembro de 2013


       O REGRESSO DA VELHA SENHORA


 

     Um pequeno grupo de estudantes católicos decidiu, a 18 de Março de 1901, criar, em Coimbra, um Centro Académico que servisse para formar quadrado e cerrar fileiras, em defesa dos princípios e valores da fé que professavam, face ao anticlericalismo do governo de Hintze Ribeiro, liberal e intolerante, que então atacava as ordens religiosas e ao próprio ambiente universitário, igualmente intolerante, laicista e maçónico. Teve como principal impulsionador o Dr. António Francisco Cordeiro, ao tempo aluno da Faculdade de Direito, e cuja firmeza, serenidade e coerência ficaram para sempre como exemplo a seguir. A criação do Centro passou por várias fases, tendo sido registado – a 17 de Abril de 1901 – com o nome de Centro Per Crucem ad Lucem – e, mais tarde – a 18 de Janeiro de 1903 -, como Centro Nacional Académico, para – a 20 de Janeiro de 1905 – se fixar no nome definitivo, de acordo com a recente Doutrina Social da Igreja: Centro Académico de Democracia Cristã (C.A.D.C.).

     Como disse um dos seus primeiros e mais marcantes presidentes, o Dr. Alberto Dinis da Fonseca: Se 18 de Março de 1901 foi a data do nascimento – 18 de Janeiro de 1903, a data do seu Baptismo, assim como 20 de Janeiro de 1905 é a data da sua Confirmação.

     Mas com a implantação da República em 1910, o C.A.D.C. vê a sua sede saqueada e encerrada. Só reabre dois anos depois, iniciando-se nessa data a publicação do jornal O Imparcial que durou até 1919. Em 1922 sai o primeiro número da revista Estudos que se publica, sem qualquer interrupção, até 1970.

     Tinha – tem – o C.A.D.C. um programa ambicioso. Disse-o o Doutor Gonçalves Cerejeira numa das suas famosas Cartas aos Novos publicada no nº 45 da revista Estudos e mais tarde reunidas em volume autónomo: O programa da vossa casa (a casa-mãe dos novos capitães de Deus) resume-se em três palavras: piedade, estudo e acção – e uma vida inteira a pô-lo em prática não chega para o realizar plenamente. Três simples palavras, cujo significado total não se pode esgotar numa vida mortal.

              Mas este programa entusiasmou gerações do século passado e fez do C.A.D.C. e da revista Estudos um excepcional pólo de irradiação da cultura católica, com projecção nacional e internacional. O extraordinário número e a elevada qualidade de permutas que a revista tinha com jornais e revistas nacionais e estrangeiras, além das obras que eram enviadas à redacção para crítica, permitia aos estudantes, que frequentavam a sede na Couraça de Lisboa, o acesso a uma riquíssima e actualizada biblioteca que dificilmente encontrariam noutro local, mesmo na própria Universidade. Era também um espaço de tertúlia e de debate livre de ideias. É ainda de realçar a sua intensa acção de apoio social, no meio coimbrão, pondo em prática a Doutrina Social da Igreja. Porém, nos anos sessenta, sobretudo fruto das chamadas lutas académicas, o C.A.D.C. atravessou algumas convulsões internas, vindo a suspender as suas actividades em 1970.

     Em 2001, nos dias 17 e 18 de Março, muitos dos antigos membros da velha casa, a que se juntaram alguns convidados – no total cerca de 450 – participaram num congresso que pretendia assinalar a data da fundação de este notável centro católico – “ O CADC na vida da Igreja e da Sociedade portuguesa” – e que foi o ponto de arranque para a revitalização da instituição que a 8 de Dezembro viu os seus sócios eleger uma nova direcção e o lançamento do primeiro número da nova série da revista Estudos.

     É o nº 10 de esta nova série – que abarca os anos de 2008 a 2013 – cuja publicação, por motivos que agora não colhem, se atrasou, que está aqui presente. Nela participo, jubilosamente, com dois artigos: O Meu Amigo Chesterton – no qual relato a minha forte ligação a essa figura inesquecível que urge ler e reler nos tempos que ora correm – e Cristofobia Contemporânea – breve análise da campanha anticristã, e sobretudo anticatólica, que o mundo moderno vem desenvolvendo, praticamente já a céu aberto, através dos meios de comunicação social e de vários intelectuais. No nosso emblema está a Cruz que muitos nos querem tirar. Em vão. É que mesmo o que a insulta é porque a vê ou a tem escondida e tem medo que outros a vejam. Porque a cruz nunca se esconde. É como a luz que não se apaga. É como o amor que não fenece.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013


                     A SOLIDÃO E O SILÊNCIO


 

     Escrever é um permanente diálogo com o silêncio. Quando escrevemos também falamos, mas falamos com o silêncio que ora está sentado a nosso lado, tão discreto que quase não damos por ele, ora vagueia pela sala, ausente e distraído, como se não estivesse presente ou nem sequer existisse. E, no entanto, é ele que preenche este vazio, que o relógio a espaços assinala, em badaladas breves que o tempo, envergonhado e arrependido, logo rouba e guarda, sem delas quase darmos conta, perdidas que foram no silêncio que não chegaram sequer a acordar.

     Estar vivo é ter a noção do silêncio. E é por isso que o doente é quem mais sente o silêncio, desejando-o para se encontrar consigo mesmo ou trocando-o levianamente pelo barulho das conversas, o ruído das pessoas, a algazarra das visitas que na ânsia de falar com o doente acabam por falar apenas umas com as outras, deixando em silêncio, mas sem silêncio, o verdadeiro paciente. Fala-se demais e num tom de voz cada vez mais alto, para abafar a palavra e o pensamento alheios, com frases aguçadas e agrestes, que magoam e ferem, deixando profundas marcas que o tempo dificilmente sara e a memória raramente esquece.

     Também o amor é feito de silêncios. Da cumplicidade dos olhares que não falam, dos gestos sem ruído, dos constantes sorrisos que se trocam. Não necessitam de muitas palavras nem de elevar o tom de voz. Fala-se quase em surdina, como se de segredo permanente se tratasse, pois basta estar presente e as poucas frases que se dizem vêm sempre embrulhadas em ternura e atadas com laços de carinho. O verdadeiro amor é o que se descobre no silêncio e que nele arde lentamente, enquanto o tempo envelhece e passa. Pouco se alimenta das palavras, quase sempre desnecessárias, insuficientes e supérfluas. É um contínuo segredo, que ambos conhecem e guardam, mas de que não se fala nem desvenda a mais ninguém.

     É também o silêncio um modo de enganar o tempo. De entrar no passado às escondidas, sem ninguém ver, como quem entra no sótão das recordações e novamente descobre o que julgava perdido, num regresso ao passado em que somos, simultaneamente, actores e espectadores, vendo passar sob os nossos olhos o filme da nossa vida, que já não admite cortes nem emendas. É uma viagem que fazemos a sós, com as horas trocadas e o calendário ao contrário, jogando com o próprio tempo que nos amarra pelos pés ao presente e deixa que o coração e o pensamento se percam no passado.

     É ainda o silêncio que liga e religa as amizades. Quantas vezes se dispersam os amigos, pela fortuna da vida e pela roda do tempo, ficando anos sem se ver nem falar, mas ainda presos entre si pelo silêncio que guarda e traz de novo as recordações dos anos que fugiram, dos encontros que não voltam, das conversas que não esquecem. É o silêncio do passado que continuamente nos bate à porta da memória e nos abre o coração a um novo reencontro, real ou fictício, em que os amigos de novo se vêm e se falam, ou recordam a sós, com saudades do futuro, esse passado, silencioso mas presente, onde plantaram e viram crescer a árvore da amizade. É feito de silêncios o nosso cofre de amigos e o segredo que o abre, que só com eles partilhamos, tanto pode ser um simples telefonema, uma carta inesperada, um encontro fortuito que, num ápice, recupera os silêncios perdidos e o tempo que passou.

     Já lá vai o tempo em que as pessoas entravam nas igrejas em busca do silêncio. Do silêncio que descia da abóbada, percorria as naves e se sentava nos bancos. Do silêncio que reconfortava as almas e sossegava os corpos, longe, embora perto, do bulício das ruas, da agitação do trabalho, do ruído das gentes. Do silêncio sagrado que a todos acolhia, o crente e o descrente, o fiel e o incrédulo. Eram então as igrejas verdadeiros oásis, oásis de silêncio neste deserto da vida demasiado ruidosa e barulhenta.

     Confundem também alguns o silêncio com a solidão. Mas o silêncio não é a solidão. O silêncio fala; a solidão cala. A solidão é viver completamente só, sem passado nem futuro e sem ter a quem escutar, a quem escrever, a quem falar. É viver perdido e, mais do que isso, esquecido do mundo, das pessoas e de si próprio. Viver artificialmente, porque a vida é sempre uma conversa que se tem com outro, real ou imaginário, que nos fala e nos responde em voz alta ou em silêncio. A solidão é o prenúncio da morte; o silêncio é o prefácio da vida.  É do silêncio que tudo nasce; é na solidão que tudo acaba.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013


FRONTALIDADE  E  BOA EDUCAÇÃO


 
 
 


     Adquiri, há tempos, as actas de um colóquio, realizado em Paris  no início dos anos noventa do século passado, que versava o tema em epígrafe. Mais de uma dúzia de sábios debatia um conjunto de questões que se põem hoje a todo o homem sério e honesto sobre as regras de boa educação que desde a Paideia da velha Grécia à Humanitas da Roma antiga, passando pelos contributos renascentistas e de outros períodos históricos, chegaram até nós, e as correntes individualistas que, sobretudo após Maio de 68 e a sua infantil e contraditória expressão é proibido proibir, subverteram essas mesmas normas e criaram a falsa noção de sinceridade ou de frontalidade que tanto adorna hoje a desbocada conversa de alguns adultos que não passam, afinal, de adolescentes mal criados.

     Todos sabemos que a chamada boa educação é uma questão de berço; de criação, diz-se em português de lei. E a cultura pode, e deve, torná-la ainda mais fina e requintada. Nada perde com isso; pelo contrário, só tem a ganhar. Um homem culto é, naturalmente, um ser superior, também, e sobretudo, porque é extremamente bem educado. Aliás, as normas de boa educação devem fazer parte integrante da sua formação.

     Por isso, seria bom que de novo se ensinassem nas escolas públicas, como outrora era norma nos colégios privados, noções de cortesia, de civilidade ou de urbanidade, de bem maior utilidade prática para os nossos alunos do que algumas disciplinas esotéricas que a ninguém aproveitam e ninguém entende. Desde sempre a boa pedagogia soube defender a necessidade de incutir nos jovens as correctas normas de sã convivência social que revelassem respeito e consideração pelo próximo, evitando, assim, a linguagem agressiva e insultuosa que hoje parece ser regra e norma comum, fruto da moderna frontalidade, que os faz regressar à selva profunda, com os urros e grunhidos das manifestações a que, lamentavelmente, já estamos habituados.

     Mas não são apenas os mais novos que devem ser alvo de uma educação correcta que os torne gente civilizada. Parece que mais necessitam alguns adultos que bem ganhavam em ler, com mão diurna e nocturna, as cartas de Cícero que, com toda clareza, nos transmitem o que já os romanos sabiam: distinguir a linguagem do camponês –rusticus – da do homem bem educado que vivia na cidade -  urbanus. Conheciam, por isso, a cortesia – comitas – e a arte de ser amável, ou seja, a humanitas. Pois não lhes era então estranha a vida de sociedade – a urbanitas -, porque possuíam aquilo a que os atenienses chamavam a elegância da boa convivência.

     Mas hoje parece que a grosseria, a boçalidade e a má criação são a regra de oiro de alguns homens públicos, apoiados e até instigados por jornalistas de igual teor. A linguagem avinhada tornou-se, nalguns casos, a anormal norma com que bolsam insultos e revelam em toda a sua plenitude a falta de nível, de cultura, de inteligência e, acima de tudo, de educação. Portugal esteve, há pouco mais de um quarto de século, à beira de ficar com uma linguagem de caserna. Parece que agora caminha a passos largos para uma linguagem de taberna.

domingo, 13 de outubro de 2013


1936, ANO DA FÉ


 
 

     13 de Outubro de 2013, cidade espanhola de Tarragona. São beatificados 522 mártires, ou seja, mais de meio milhar de católicos assassinados in odium fidei, pelos republicanos e “rojos” espanhóis, em plena Guerra Civil e na zona que eles próprios controlavam, através do terror e da maior perseguição religiosa que ocorreu, em todo o século vinte, na Península Ibérica. Feroz perseguição religiosa que, para qualquer historiador sério, começou em 1931 mas ganhou foros de verdadeiro holocausto católico a partir de 1936.

     O historiador inglês Paul Johnson afirmou que “ para os republicanos a Igreja católica era o alvo principal do ódio…” Para G. Jackson, “ os primeiros três meses da guerra foram o período de máximo terror na zona republicana…. Os sacerdotes… foram as principais vítimas de puro gangsterismo.” Stantley G. Payne chegou a dizer que “ a perseguição à Igreja católica foi a maior jamais vista na Europa ocidental, inclusive nos momentos mais duros da Revolução Francesa”. E acrescenta: “ Durante a Guerra Civil o único grupo marcado para o extermínio foi o clero”. H. Thomas diz-nos também que “ possivelmente em nenhuma época da história da Europa, e provavelmente do mundo, se manifestou um ódio tão apaixonado contra a religião e tudo o que com ela está relacionado”.

     De facto, esta sistemática perseguição religiosa que, segundo outro autor – G. Hermet – reveste um carácter de verdadeiro massacre, não incidiu apenas sobre bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas, leigos comprometidos na acção pastoral ou simples fiéis que foram sumariamente executados ou vítimas de inauditos suplícios, por não renunciarem à sua fé, acreditando até à morte no seu único e verdadeiro Deus, o Deus católico, uno e trino. Mas foi também um ataque organizado contra a tradição e os símbolos religiosos, a destruição de bens culturais de valor incalculável, como bibliotecas e obras de arte, o incêndio de igrejas, a destruição de monumentos religiosos, como o monumento ao Sagrado Coração de Jesus, em Madrid – previamente “fuzilado”, antes de ser dinamitado -, e até, macabramente, a profanação de sepulturas e de cemitérios. O ódio cego à Igreja católica queria substituir a expressão de F. Nietzche, “ Deus morreu”, pela de Tatiana Goritcheva, “ Deus foi executado”.

     Em Toledo, o poeta sul-africano Roy Campbell, nesse ano da fé de 1936, viu morrer como mártires os seus amigos carmelitas que lhe tinham confiado a guarda dos preciosos manuscritos de S. João da Cruz, que mais tarde traduziu admiravelmente para inglês. Por toda a Espanha, sob o governo da Frente Popular – formado por socialistas e comunistas -, foram milhares os que tombaram nobremente, num autêntico holocausto católico, gritando, Viva Cristo Rei!, como os “cristeros” no México nos anos vinte – 1926-1929 - também eles vítimas do mesmo ódio à fé.

     E é ouvindo esse grito arrepiante, por entre o contínuo metralhar que tudo mata e destrói, esse grito que brada aos céus, que me vêm à memória os versos de Paul Claudel – do poema Aos mártires espanhóis -, como salmos que se rezam, como contas de um rosário:

     Onze bispos, dezasseis mil sacerdotes massacrados e nem uma só apostasia.

     Ah! Oxalá pudesse dar, como tú, em voz alta, um claro testemunho, no esplendor do meio-dia.

     1936 é, pois, um verdadeiro Ano da Fé. Que convém lembrar, quando se encerra o actual  Ano da Fé instituído pelo Papa emérito Bento XVI. Que convém lembrar, quando em várias partes do mundo, sobretudo em África e na Ásia, os católicos continuam a ser vítimas indefesas de esse cobarde ódio à fé. Perante o beneplácito da comunidade internacional que, muitas vezes, também o incita activamente atacando a Igreja e os seus legítimos representantes, através de mentiras e de falsidades. Cobardemente. Porque sabem que, tal como na Guerra Civil espanhola, os católicos que morrem vítimas de perseguição perdoam aos seus inimigos e, no seu último alento, ainda rezam por eles.


 

domingo, 6 de outubro de 2013


 
          
REGRESSO ÀS AULAS


 

                                                                Antigamente a escola era risonha e franca…

                                                                                                                          Acácio Antunes

     No autocarro, sentou-se ao meu lado um senhor com uma cara tão triste, tão triste, que só de olhar para ele dava vontade de chorar. E foi nesse estado de ânimo que entrei em casa, com a imagem de esse velho de bigode murcho a matraquear-me a cabeça e as lágrimas, só de me lembrar dele, a saltar-me dos olhos, como se tivesse vindo de um velório. Tinha acabado de tirar o casaco, quando senti bater à porta. Estremeci, quase sem querer, imaginando que o diacho do velho me tinha seguido, para se certificar do meu estado de ânimo e da minha capacidade de choro.

     Tive sorte. Em vez da tristeza ambulante, saiu-me na rifa um velho companheiro do saudoso Liceu D. João III, alegre e folgazão, que vinha tirar dois dedos de conversa e saber, de forma naturalmente discreta, se ainda tinha aquela garrafita de Porto, ou alguma alma gémea, que tão boa companhia nos fizera na semana passada.

     Foi um bom remédio. A tristeza foi desaparecendo à medida que se esvaziava a garrafa e ele contava histórias do tempo do liceu. Dos colegas, dos contínuos mas, sobretudo, dos professores. O professor de História era um senhor já de idade, que escrevia artigos para um jornal da terra, e dava pelo nome de um conhecido escritor italiano: o célebre autor de As minhas prisões. A rapaziada não o levava muito a sério e nos pontos escritos, sabendo de antemão que nunca os lia, aproveitava para fazer relatos de futebol, contar anedotas ou inventar histórias do arco-da-velha. À cautela, lá ia respondendo, sempre de forma vaga e difusa, à primeira questão, sobretudo na primeira página. Mas sem se esforçar muito.

     Ora sucedeu, contava entusiasmado o meu amigo, que um dia o pai foi chamado ao reitor. Na sala encontrava-se também o professor de História que se pôs a dizer que não admitia que os alunos gozassem com ele e lhe faltassem ao respeito. Dera-se o caso, verdadeiramente inédito, de ter lido todo o ponto do meu velho amigo do liceu. O desgraçado tinha respondido à segunda questão – “ Descreve as cerimónias do Feudalismo” – relatando, com grande vivacidade e abundante cópia de pormenor, o último jogo da Académica no Estádio Municipal. Achou o mestre – e muito provavelmente com razão – que a resposta era completamente inadequada e verdadeiramente anacrónica. Mas muito mais do que isso, considerou-a uma ofensa. O pai do infeliz aluno, concordando embora com o sábio professor, lá foi desculpando o rapaz, dizendo que se calhar não era só ele que respondia assim, que lesse o mestre também as outras provas… Que não! Teimava o professor. Que as tinha lido todas e só ele, e apenas ele, cometera essa afronta! E o pai do meu amigo lá tornava e retornava a pedir desculpa, acrescentando que tivesse a certeza que o seu filho não voltaria a tomar essa atitude.

     À cautela, quando chegou a casa, deu-se o mestre ao cuidado de ir, de facto, ler os outros pontos dos rapazes. E não é que então, e só então, é que se deu conta do que há anos vinham fazendo?

     Mas ainda havia mais. Vivia-se então na época de ouro das chamadas orais. O professor pegava na caderneta, esse pequeno instrumento de suplício, folheava-a, pausadamente, parando de quando em quando para ver a reacção do auditório, e disparava, de repente, um número ou um nome, que era motivo de sobressalto no visado e de alívio e de satisfação nos restantes. Ora este distraído mestre costumava anotar nas folhas da caderneta o nome da pessoa amiga que lhe recomendava os rapazes. Não se esquecia, assim, de quem lhe tinha feito o pedido e sempre era mais fácil para dar as notas no final do período. Porém, um belo dia, para espanto de toda a turma, acertando embora no número, enganou-se no nome, trocando as linhas, e, sem se aperceber do erro, disse numa voz fanhosa que se ouviu em toda a sala: “Vem hoje à lição o número cinco, Sua Excelência Reverendíssima o Senhor Arcebispo-Bispo-Conde, D. Ernesto!”
 
 

domingo, 29 de setembro de 2013

O VALOR DA MEMORABILIA



 

     No final dos anos cinquenta do século passado foi publicado em França um livro de Maurice Rheims sobre o coleccionismo que rapidamente se tornou famoso. Intitulava-se A estranha vida dos objectos e ia ao encontro do gosto de coleccionar, do bichinho de guardar peças de memorabilia ou simples recordações de viagens que, quase como uma doença, entrou nas melhores famílias e passou, com naturalidade, a fazer parte da vida de quase todos nós, transformando as nossas casas em álbuns de recordações.

     Também a minha casa é um álbum. Espalhadas por móveis e paredes há recordações de viagens e de amigos, de velhos parentes que quase não conheci e de figuras históricas que do passado vieram ter comigo para assim penetrar alegres nos umbrais do futuro. Fazemo-nos boa companhia. E ora falo com uns, ora converso com outros, como se os visitasse na sua própria casa e não na minha. Têm todos o seu cantinho, o seu espaço próprio, a sua zona residencial. Quando lá chego, não bato à porta nem peço licença para entrar, mas sinto-me como se vivesse noutro lugar e noutro tempo: sinto mesmo no ar um microclima, carregado de sentimentos e de profundas emoções.

     A minha casa é um álbum. Viro a esquina do corredor como quem desfolha páginas, pois cada parede traz consigo miríades de imagens que se escondem por detrás de uma fotografia, de um relógio, de um prato, de uma gravura antiga. E em cima de cada móvel há objectos que contam histórias sem cessar, lembram rostos que não esquecem, paisagens deslumbrantes, viagens sem ter fim.

     A minha casa é como um álbum vitoriano. Tenho necessidade de povoar todo o meu espaço de objectos que me digam alguma coisa, que embora inertes tenham vida, que tragam dentro de si alguma história e passem serões de inverno ou tardes cálidas de verão a falar para mim, a fazer-me companhia. Quando olho para todos eles, espalhados quase ao acaso por móveis e recantos, lembro-me de pessoas e de locais, vêm-me à memória dias precisos e horas certas, como se tivesse sido há pouco, momentos antes de entrar em casa. É que a nossa vida é um mosaico, feito de pedaços que só nós próprios sabemos encaixar.

     A minha casa é um álbum. Precioso álbum que só eu conheço e de que sei o significado. Precioso álbum que guardo a todo o custo, como criança adulta que não quer perder tantos sonhos passados e futuros. Mas mais do que dormir com ele, bem agarrado, debaixo dos lençóis, para que ninguém mo tire, vivo com ele e dentro dele. Tanto faço parte dele como ele faz parte de mim. A minha casa é um álbum.