terça-feira, 26 de novembro de 2013


       O REGRESSO DA VELHA SENHORA


 

     Um pequeno grupo de estudantes católicos decidiu, a 18 de Março de 1901, criar, em Coimbra, um Centro Académico que servisse para formar quadrado e cerrar fileiras, em defesa dos princípios e valores da fé que professavam, face ao anticlericalismo do governo de Hintze Ribeiro, liberal e intolerante, que então atacava as ordens religiosas e ao próprio ambiente universitário, igualmente intolerante, laicista e maçónico. Teve como principal impulsionador o Dr. António Francisco Cordeiro, ao tempo aluno da Faculdade de Direito, e cuja firmeza, serenidade e coerência ficaram para sempre como exemplo a seguir. A criação do Centro passou por várias fases, tendo sido registado – a 17 de Abril de 1901 – com o nome de Centro Per Crucem ad Lucem – e, mais tarde – a 18 de Janeiro de 1903 -, como Centro Nacional Académico, para – a 20 de Janeiro de 1905 – se fixar no nome definitivo, de acordo com a recente Doutrina Social da Igreja: Centro Académico de Democracia Cristã (C.A.D.C.).

     Como disse um dos seus primeiros e mais marcantes presidentes, o Dr. Alberto Dinis da Fonseca: Se 18 de Março de 1901 foi a data do nascimento – 18 de Janeiro de 1903, a data do seu Baptismo, assim como 20 de Janeiro de 1905 é a data da sua Confirmação.

     Mas com a implantação da República em 1910, o C.A.D.C. vê a sua sede saqueada e encerrada. Só reabre dois anos depois, iniciando-se nessa data a publicação do jornal O Imparcial que durou até 1919. Em 1922 sai o primeiro número da revista Estudos que se publica, sem qualquer interrupção, até 1970.

     Tinha – tem – o C.A.D.C. um programa ambicioso. Disse-o o Doutor Gonçalves Cerejeira numa das suas famosas Cartas aos Novos publicada no nº 45 da revista Estudos e mais tarde reunidas em volume autónomo: O programa da vossa casa (a casa-mãe dos novos capitães de Deus) resume-se em três palavras: piedade, estudo e acção – e uma vida inteira a pô-lo em prática não chega para o realizar plenamente. Três simples palavras, cujo significado total não se pode esgotar numa vida mortal.

              Mas este programa entusiasmou gerações do século passado e fez do C.A.D.C. e da revista Estudos um excepcional pólo de irradiação da cultura católica, com projecção nacional e internacional. O extraordinário número e a elevada qualidade de permutas que a revista tinha com jornais e revistas nacionais e estrangeiras, além das obras que eram enviadas à redacção para crítica, permitia aos estudantes, que frequentavam a sede na Couraça de Lisboa, o acesso a uma riquíssima e actualizada biblioteca que dificilmente encontrariam noutro local, mesmo na própria Universidade. Era também um espaço de tertúlia e de debate livre de ideias. É ainda de realçar a sua intensa acção de apoio social, no meio coimbrão, pondo em prática a Doutrina Social da Igreja. Porém, nos anos sessenta, sobretudo fruto das chamadas lutas académicas, o C.A.D.C. atravessou algumas convulsões internas, vindo a suspender as suas actividades em 1970.

     Em 2001, nos dias 17 e 18 de Março, muitos dos antigos membros da velha casa, a que se juntaram alguns convidados – no total cerca de 450 – participaram num congresso que pretendia assinalar a data da fundação de este notável centro católico – “ O CADC na vida da Igreja e da Sociedade portuguesa” – e que foi o ponto de arranque para a revitalização da instituição que a 8 de Dezembro viu os seus sócios eleger uma nova direcção e o lançamento do primeiro número da nova série da revista Estudos.

     É o nº 10 de esta nova série – que abarca os anos de 2008 a 2013 – cuja publicação, por motivos que agora não colhem, se atrasou, que está aqui presente. Nela participo, jubilosamente, com dois artigos: O Meu Amigo Chesterton – no qual relato a minha forte ligação a essa figura inesquecível que urge ler e reler nos tempos que ora correm – e Cristofobia Contemporânea – breve análise da campanha anticristã, e sobretudo anticatólica, que o mundo moderno vem desenvolvendo, praticamente já a céu aberto, através dos meios de comunicação social e de vários intelectuais. No nosso emblema está a Cruz que muitos nos querem tirar. Em vão. É que mesmo o que a insulta é porque a vê ou a tem escondida e tem medo que outros a vejam. Porque a cruz nunca se esconde. É como a luz que não se apaga. É como o amor que não fenece.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013


                     A SOLIDÃO E O SILÊNCIO


 

     Escrever é um permanente diálogo com o silêncio. Quando escrevemos também falamos, mas falamos com o silêncio que ora está sentado a nosso lado, tão discreto que quase não damos por ele, ora vagueia pela sala, ausente e distraído, como se não estivesse presente ou nem sequer existisse. E, no entanto, é ele que preenche este vazio, que o relógio a espaços assinala, em badaladas breves que o tempo, envergonhado e arrependido, logo rouba e guarda, sem delas quase darmos conta, perdidas que foram no silêncio que não chegaram sequer a acordar.

     Estar vivo é ter a noção do silêncio. E é por isso que o doente é quem mais sente o silêncio, desejando-o para se encontrar consigo mesmo ou trocando-o levianamente pelo barulho das conversas, o ruído das pessoas, a algazarra das visitas que na ânsia de falar com o doente acabam por falar apenas umas com as outras, deixando em silêncio, mas sem silêncio, o verdadeiro paciente. Fala-se demais e num tom de voz cada vez mais alto, para abafar a palavra e o pensamento alheios, com frases aguçadas e agrestes, que magoam e ferem, deixando profundas marcas que o tempo dificilmente sara e a memória raramente esquece.

     Também o amor é feito de silêncios. Da cumplicidade dos olhares que não falam, dos gestos sem ruído, dos constantes sorrisos que se trocam. Não necessitam de muitas palavras nem de elevar o tom de voz. Fala-se quase em surdina, como se de segredo permanente se tratasse, pois basta estar presente e as poucas frases que se dizem vêm sempre embrulhadas em ternura e atadas com laços de carinho. O verdadeiro amor é o que se descobre no silêncio e que nele arde lentamente, enquanto o tempo envelhece e passa. Pouco se alimenta das palavras, quase sempre desnecessárias, insuficientes e supérfluas. É um contínuo segredo, que ambos conhecem e guardam, mas de que não se fala nem desvenda a mais ninguém.

     É também o silêncio um modo de enganar o tempo. De entrar no passado às escondidas, sem ninguém ver, como quem entra no sótão das recordações e novamente descobre o que julgava perdido, num regresso ao passado em que somos, simultaneamente, actores e espectadores, vendo passar sob os nossos olhos o filme da nossa vida, que já não admite cortes nem emendas. É uma viagem que fazemos a sós, com as horas trocadas e o calendário ao contrário, jogando com o próprio tempo que nos amarra pelos pés ao presente e deixa que o coração e o pensamento se percam no passado.

     É ainda o silêncio que liga e religa as amizades. Quantas vezes se dispersam os amigos, pela fortuna da vida e pela roda do tempo, ficando anos sem se ver nem falar, mas ainda presos entre si pelo silêncio que guarda e traz de novo as recordações dos anos que fugiram, dos encontros que não voltam, das conversas que não esquecem. É o silêncio do passado que continuamente nos bate à porta da memória e nos abre o coração a um novo reencontro, real ou fictício, em que os amigos de novo se vêm e se falam, ou recordam a sós, com saudades do futuro, esse passado, silencioso mas presente, onde plantaram e viram crescer a árvore da amizade. É feito de silêncios o nosso cofre de amigos e o segredo que o abre, que só com eles partilhamos, tanto pode ser um simples telefonema, uma carta inesperada, um encontro fortuito que, num ápice, recupera os silêncios perdidos e o tempo que passou.

     Já lá vai o tempo em que as pessoas entravam nas igrejas em busca do silêncio. Do silêncio que descia da abóbada, percorria as naves e se sentava nos bancos. Do silêncio que reconfortava as almas e sossegava os corpos, longe, embora perto, do bulício das ruas, da agitação do trabalho, do ruído das gentes. Do silêncio sagrado que a todos acolhia, o crente e o descrente, o fiel e o incrédulo. Eram então as igrejas verdadeiros oásis, oásis de silêncio neste deserto da vida demasiado ruidosa e barulhenta.

     Confundem também alguns o silêncio com a solidão. Mas o silêncio não é a solidão. O silêncio fala; a solidão cala. A solidão é viver completamente só, sem passado nem futuro e sem ter a quem escutar, a quem escrever, a quem falar. É viver perdido e, mais do que isso, esquecido do mundo, das pessoas e de si próprio. Viver artificialmente, porque a vida é sempre uma conversa que se tem com outro, real ou imaginário, que nos fala e nos responde em voz alta ou em silêncio. A solidão é o prenúncio da morte; o silêncio é o prefácio da vida.  É do silêncio que tudo nasce; é na solidão que tudo acaba.