sábado, 30 de março de 2013

Tintim em Macau


Adquiri, há alguns anos, numa loja da movimentada Rua da Palha, umas camisolas de algodão que tinham estampados quadrinhos tirados dos álbuns de Tintim, ou mesmo, nalguns casos, uma prancha completa. A loja já desapareceu. É agora uma sapataria. E as camisolas do Tintim, diferentes todas elas das versões oficiais vendidas nas lojas que mantém a presença de Hergé um pouco por todo o Mundo, continuam a servir no Verão, sobretudo quando vou a banhos. Sempre que passo na mesma rua, ainda tento descobrir o paradeiro da loja desaparecida, na busca de uma nova peça de vestuário, naturalmente contrafeita, que me lembre o velho e saudoso companheiro dos meus tempos de juventude e que continuo a reviver agora, com o mesmo proveito e a mesma alegria. Ando, por isso, aqui, em Macau, à procura do Tintim. Não, como os Dupond e Dupont, a percorrer, disfarçado, a cidade chinesa. Mas com a plena serenidade de quem está, não obstante a língua e os costumes, numa cidade cristã.
     Falar de Tintim nesta cidade pode, à primeira vista, lançar alguma confusão. É que tin-tin era o nome que se dava às lojas de bricabraque chinesas que, no século passado, existiam em vários locais, sobretudo para os lados do Porto Interior, num largo dito “das melancias”, a que os chineses chamavam Lan-Kuoi-Lau, sendo também conhecida como “Feira da Ladra”. Ou aos vendedores ambulantes de ferro-velho que tudo vendiam e, aparentemente, consertavam. O nome, creio, tinha a ver com o barulho que o vendedor fazia batendo incessantemente um prego num pedaço de ferro, para chamar a atenção da interessada clientela. Esses tintins praticamente desapareceram. Hoje falar em Tintim – dingding, em mandarim – é lembrar os seus livros, sobretudo O Lótus Azul, a mais conhecida aventura do nosso herói na China e o álbum que mais rapidamente se esgota nestas paragens. Nele, como sabemos, é-nos apresentado um jovem chinês, estudante da Academia de Belas Artes de Bruxelas, e cuja história e amizade com Hergé se tornou lendária.
     Zhang Chongren (1907-1998), artista e escultor que ganhou merecida fama e tem, em Xangai, sua cidade natal, um museu que lhe é dedicado, deu origem, no álbum, à figura de Tchang (transcrição fonética de Zhang),   grande amigo de Hergé, na vida real, e que reaparece, de forma comovente, em Tintim no Tibete. Publicado inicialmente na revista Petit “vingtième”, entre Agosto de 1934 e Outubro de 1935, com o título de Tintim no Extremo Oriente, o álbum O Lótus Azul é verdadeiramente inovador, dando-nos uma visão mais correcta e realista da China de então, ainda pouco conhecida no Ocidente. Nele, ao contrário do álbum anterior, As Aventuras de Tintim, repórter no Oriente, título inicial da versão moderna de Os Charutos do Faraó, onde surge pela primeira vez o nosso simpático compatriota Oliveira da Figueira, não há qualquer personagem portuguesa. Como sabemos, são apenas três os nossos compatriotas que se cruzam com Tintim. Além de este amigo de toda a hora e dos momentos mais difíceis e inesperados, há o jornalista do Diário de Lisboa, em Tintim no Congo – cuja primeira versão entre nós foi “Tim-Tim em Angola”, na revista O Papagaio – e o Professor Pedro João dos Santos, o célebre físico da Universidade de Coimbra, em A Estrela Misteriosa.
     E por que não, pergunto eu ao deambular por esta cidade, onde o Ocidente se cruza com o Oriente, um Tintim em Macau, como continuação de O Lótus Azul, passado em pleno período da Segunda Grande Guerra? Nesta cidade que já foi comparada, nesse período, à Casablanca que o cinema mitificou ou à velha capital portuguesa que, quando a Europa ardia em chamas, mantinha uma paz digna e difícil, embora não isenta de muitos sacrifícios. Uma paz de uma enorme grandeza, transformada na extraordinária Exposição do Mundo Português, em que Macau naturalmente participou, e tanto impressionou o criador de O Principezinho, Antoine Saint-Exupéry.
     Para a feitura de este álbum podia muito bem contribuir o livro de João F. O. Botas, que o Instituto Internacional de Macau soube, em boa hora, editar. Estudo sério e muito bem documentado, que consegue dar uma boa visão de uma das épocas mais difíceis de este conturbado oásis de paz, entre 1937 e 1945. Oásis de paz, quando à sua volta grassava a guerra, a fome, a doença e a morte, e cujas consequências se faziam sentir também aqui diariamente. Traz-nos este livro figuras dignas de um bom álbum de Hergé e de episódios que dariam magníficas e coloridas pranchas. É certo que a violência parecia correr a par e passo, muitas vezes, com a pacatez do quotidiano. Mas outros álbuns do Tintim, como o próprio O Lótus Azul, já referido, se passam também em plena guerra, com ódios, traições e violências desmedidas. A arte de Hergé saberia, por certo, tudo dosear e fazer de Macau o centro inesquecível de mais uma fabulosa aventura de Tintim.
      Fico a pensar em tudo isto quando leio o livro Macau 1937-1945. Os Anos da Guerra. E nele vejo Tintim a falar com Pedro Lobo e com Monsenhor Manuel Teixeira. Imagino Hergé a relatar a chegada a Macau de várias malas de livros do historiador britânico Charles Boxer, quando os japoneses ocuparam Hong Kong. Como Danilo Barreiros, grande amigo do historiador inglês, possuía a chave de sua casa conseguiu assim salvar a preciosa biblioteca. Impressionante é também a vivacidade e o colorido que o criador de Tintim dá ao quartel-general do pirata Wang Kong Kit, situado na Avenida Horta e Costa. O contraste é Henrique Senna Fernandes – um dos meus escritores da estante reservada – a contar, com toda a graça e encanto que só ele tinha, as trapalhadas dos “detectives” Dupond e Dupont, perdidos entre os refugiados chineses, os macaenses de Hong Kong e os japoneses que se passeiam na cidade. Tudo isto sob o olhar atento do jovem Padre Lancelote Rodrigues, enquanto o pintor russo George Smirnoff tenta transformar rapidamente esta cena numa aguarela. Mas um dos melhores momentos do álbum é, sem dúvida – e penso que o leitor amigo é da mesma opinião -, o episódio, superiormente tratado por Hergé, da intrusão sub-reptícia de Tintim na casa do representante japonês em Macau e, ao sentir-se descoberto, a fuga apressada por um túnel, situado na cave do edifício, que, pensava ele, o traria rapidamente para o exterior. Mas o túnel ligava com a casa do vizinho que era, nem mais, nem menos, a do cônsul inglês em Macau!... Mais a frente, é o espanto de Tintim ao cruzar-se, na Avenida Almeida Ribeiro, com o americano William Gardner, fardado de oficial japonês. Espanto ainda maior, quando na última prancha do álbum, o vê fardado agora de oficial americano e ostentando, garboso, vistosa condecoração.
     Tintim em Macau, afinal, existe. Embora seja apenas na minha imaginação.

 

sábado, 23 de março de 2013


PORTA DO CÉU





     Passo a passo, degrau a degrau, vou subindo a escadaria que me conduz à fachada da igreja de Nossa Senhora Mãe de Deus, em latim, Mater Dei, como se encontra gravado no lintel da porta da entrada principal. Degrau a degrau, passo a passo, olho para o céu e nele vejo recortada a fachada da igreja de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, a quem foi dedicado este espaço sagrado que fazia parte do Colégio de Nossa Senhora Mãe de Deus, a primeira universidade europeia no Extremo-Oriente, fundada pelos jesuítas, em 1594, nesta cidade de Macau.

     Passo a passo, degrau a degrau, subo devagar a velha escadaria em direcção à fachada que, com o tempo, ganhou o nome de fachada de S. Paulo, nome que vulgarizou também o colégio anexo, e que, no século XVII, muitos consideravam como tendo comparação apenas com a Basílica de S. Pedro, em Roma. Ponto de encontro entre o Ocidente e o Oriente, é desde o dia 15 de Julho de 2005 Património Mundial da Unesco. E aqui se encontram ainda hoje muitas e variadas gentes, que a visitam diariamente, por esta mesma escadaria subindo, passo a passo, degrau a degrau.

     Passo a passo, degrau a degrau, vou subindo também a escadaria. Cruzo-me com turistas de quase toda a Ásia e um ou outro europeu, que, num corrupio incessante, ora sobem, ora descem. Subo lentamente, olhos postos na fachada em ruínas que, para mim, continua a ser uma das mais belas do Mundo. É a única que simboliza a minha Igreja. Porque ela, e só ela, abre as portas directamente para o Céu.

     Passo a passo, degrau a degrau vou subindo a escadaria. E recitando baixinho este belíssimo poema de um velho Amigo. Degrau a degrau, passo a passo.

     NAS RUÍNAS DA IGREJA DA MADRE DE DEUS

     Ave, Madre, Maria,
    Cheia de Graça tanta,
    Madre de Deus, Porta do Céu,
    Aqui estamos convosco;
    Ave Pomba, Ave Madre, Maria,
    Salvé Pedras para o Céu!
    Aqui, Santíssima,
    Excelsa Mãe de Deus,
    Estas escalas subimos,
    Mãe de todo o Oriente,
    Madre de todo o Ocidente,
    Madre nossa, Madre Puríssima,
    Rosa Cândida, Madre de Deus.

domingo, 10 de março de 2013

O MEU GATO LEITOR


     Quando as casas eram suficientemente grandes para nos podermos espalhar calmamente por todas as divisões, que normalmente eram muitas, escolhia-se o sótão como reserva natural de arrumações, onde tudo o que já não era imediatamente útil, mas poderia ainda um dia vir a ser necessário, ficava invariável e caoticamente desarrumado. O sótão era, assim, o local mágico e secreto – secreto, porque no fundo ninguém sabia de facto o que lá estava – que nos atraia desde crianças e onde nos refugiávamos em busca de livros perdidos e esquecidos, jogos meio desfeitos ou brinquedos fora de moda que nos abriam, de par em par, a enorme porta da fantasia pela qual entrávamos, ligeiros e contentes, numa nova aventura, perdidos no tempo e no espaço. Hoje, as casas são pequenas: um simples andar na confusão de um prédio, a que por vezes se junta uma garagem que era suposto servir para guardar o automóvel mas que acaba por substituir o velho sótão, mais confusa e caótica do que este.

     Há frases meio tolas. Diz-se que o saber não ocupa lugar. Mas os livros ocupam, e muito. Nas casas antigas, em que alguns de nós ainda fomos criados, os livros que já não estavam a uso subiam as escadas e iam dormir para o sótão. Hoje, como isso já não é possível, ficam fechados na garagem, a dormir como podem, quase ao relento. No apertamento do meu apartamento tive também de fazer o mesmo: enchi a garagem de estantes e acomodei cuidadosamente os livros que não podia ter no escritório ou que na altura não me eram tão úteis. De vez em quando pareço um rato trocador a levar livros escada a cima, a trazer livros escada a baixo. Talvez por isso me tenha aparecido há dias na minha garagem-biblioteca um gato, um gato leitor.

     Estava eu serenamente entretido nas minhas arrumações bibliófilas, quando um gato me entra atrevidamente pela porta escancarada e, com olhar meigo e calmo, me cumprimenta serenamente: “Miau!”. Temeroso de que me fizesse alguma tropelia nalguma obra mais valiosa, respondi-lhe: ”Podes entrar, mas não fazes nenhuma asneira. Está bem?” O gato, educadamente – via-se que era de boas famílias -, respondeu com um novo “miau!” e avançou para a secção de romances. Do sítio onde estava não o via, mas confiei no bichano que me pareceu atilado e desejoso de se instruir. Via-se pelo olhar atento e brilhante que não era um analfabeto encartado como muitos humanos que olham para os livros como dantes se olhava para os leprosos: com repulsa e nojo. Entretido como estava, quase me ia esquecendo do meu amigo gato leitor. Mas, às escondidas, sem que ele me vise, espreitei por entre duas estantes e pus-me a observá-lo. Olhava com muita atenção para os romances de Camilo, enquanto lambia as patitas. Fiquei satisfeito; não era só um gato culto, era também um gato limpo. Quando acabei, chamei-o e, obedientemente, saiu à minha frente, para poder fechar a porta.

     Quase todas as vezes que ia à minha garagem-biblioteca o gato leitor, estivesse onde estivesse, vinha, feliz e contente, ter comigo. Ia sempre para a mesma secção. Gostava de romances e de livros de aventura. Vi-o um dia, embevecido, a olhar para o Dom Quixote, desejoso, quem sabe, de calcorrear terras de Espanha, atrás do cavaleiro magricela e do gordo Sancho Pança. É curioso que não ligava muito aos livros de ensaios, de História, de Filosofia ou de matérias menos próprias para felinos. Contentava-se, e bem, com os bons e velhos romances que o distraiam e o levavam a passear, pelo menos na imaginação, por outras terras e paisagens. Era sempre calmo e educado e fez da minha biblioteca a sua biblioteca. Quase se não dava por ele, embora cumprimentasse sempre quando entrava e, creio, que também quando saía. Digo, creio, porque por vezes estava de tal maneira entretido que não me apercebia que o meu amigo gato leitor já se tinha ido embora, certamente chamado ao cumprimento de outros afazeres, menos cultos, mas também não menos importantes.

     Até que um dia, empenhados os dois no desenvolvimento harmónico da nossa formação cultural, humana e felina, me esqueci, pura e simplesmente, do meu gato leitor. Enquanto ele continuava entretido a ler alguma obra que, pelos vistos, muito o interessava, sem dar conta fechei a porta da garagem-biblioteca e regressei ao meu escritório, levando, é quase certo, algum livro na mão de que necessitava para o meu estudo ou investigação. Mas nem sequer o abri porque me lembrei que tinha de sair para tratar qualquer assunto urgente e de que já me estava a esquecer. O livro ficou assim esquecido no escritório e o gato leitor esquecido na garagem.

     Quando regressei a casa soube que um vizinho tinha andado à procura do seu gato – o meu gato leitor – e, ao ouvi-lo miar da minha garagem, vindo cá a casa pedir à empregada o favor de lhe abrir a porta para recuperar o seu bichano que, pelos vistos, também se distraiu com a leitura e não deu conta da minha partida. Mas depois de esse incidente não ficámos zangados.

     O meu amigo felino voltou a frequentar a biblioteca. Mas agora é ele que, sorrateiramente, vem, de vez em quando, ver se ainda lá estou, sobretudo quando faço pouco barulho, não vá ficar outra vez esquecido, preso, sozinho e, sobretudo, sem luz. Porque ele não gosta de ler às escuras…

domingo, 3 de março de 2013

VAMPIROS, MORCEGOS E PESADELOS

    



 Já lá vai o tempo em que uma livraria era um lugar seguro. Agora, não é assim. Pode até ser um local extremamente perigoso. Há dias entrei numa e vi-me imediatamente rodeado de vampiros. Melhor dito, de livros de vampiros, sobre vampiros e com vampiros na capa que me olhavam, atentos e sequiosos. Um jovem funcionário, extremamente simpático, avançou, lesto, na minha direcção e perguntou-me, solicito, se precisava de ajuda. Pareceu-me que, ao sorrir, pôs um dente de fora e, sugestionado pela abundância de vampiros que me olhavam gulosos da prateleira, levei instintivamente a mão direita ao pescoço, em jeito de atabalhoada protecção, disfarçando rapidamente como quem está a compor o colarinho da camisa. Mal ganhei para o susto.
     Pensava eu, na minha ingenuidade, que os vampiros só atacavam de noite ou, na melhor das hipóteses, ao lusco-fusco, nos dias nublados. Mas eis que agora, provavelmente com legislação nova e mais actualizada, atacam a qualquer hora, desde as nove da manhã às nove da noite, e sem pausa para almoço. São um verdadeiro perigo. Tanto mais que pode qualquer um  levá-los para casa, nalguns casos até com desconto de dez por cento, e aí, sim, longe de olhares indiscretos, actuar em conformidade. Ao que nós chegámos: aos vampiros em saldo, aos vampiros volantes, aos vampiros de bolso!
     A necessidade de uma literatura de fortes emoções, que nos deixe, literalmente, sem pinga de sangue, não é um bom barómetro cultural. Forte emoção tínhamos nós, noutro tempo, quando, depois de juntarmos as nossas sempre magras economias, podíamos comprar um livro de um autor de boa prosa e sólida cultura que levávamos, já em animada conversa, como velhos e inseparáveis amigos, para o aconchego do lar, entusiasmados com a dupla aquisição: de leitura e de recheio da biblioteca. Ou então aquele livro de arte, duplamente pesado, no preço e no tamanho, só possível no Natal ou no nosso aniversário, se por acaso o tivéssemos insinuado sub-repticiamente a algum familiar ou amigo mais chegado. Agora, temos a emoção a martelo, ou melhor, ao dente!
     Esta literatura de pesadelo é, por norma, demasiado pesada: os vampiros são quase sempre de muito alimento. São páginas e páginas tintas de sangue, de gritos de horror, de fugas apressadas, de muitas e sofisticadas ideias idiotas, quando não perfeitamente imbecis. Saltando de capítulo em capítulo e até de livro em livro, surgem verdadeiras famílias vampirescas, a que não são imunes as próprias crianças que, desde que já tenham dentes com alguma consistência, podem também fazer parte integrante de essa imensa família que alastra pelas livrarias e começa a viver, refastelada, nas melhores bibliotecas públicas e em muitas privadas.
     Tinha ideia que a relação com os livros era mais uma coisa de morcegos do que de vampiros. Na Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra há uma simpática colónia de morcegos que todos os dias, ou melhor, todas as noites, quando as portas do vetusto edifício estão encerradas para o público, avança, sem dó nem piedade,  para a bicharada – que ousa atacar as preciosas obras que aí estão guardadas – e dela faz o seu lauto e suculento jantar. Tem a protecção do Senhor Director e não consta que estejam sindicalizados, pois não há notícias de greves e, muito menos, de greves de fome. É caso para dizer: morcegos, sim; vampiros, não.
     Neste momento já deve estar o leitor amigo a pensar que sou só a favor da literatura séria, daquela que supostamente se ensina nas escolas e de que os críticos dizem bem, sem nunca a terem lido. Nada disso.  Também há bons livros, e até muito bons, na chamada literatura de pesadelo. E é precisamente um de esses livros que está aqui, ao meu lado, a agitar-se todo irrequieto para que eu o leia de novo: O homem que era quinta-feira, de G. K. Chesterton. Muitos, por certo, acharão estranho que eu coloque esta obra na literatura de pesadelo, mas foi o próprio autor que assim o fez ao integrar no título do livro Um pesadelo, embora muitos editores não apresentem o nome completo da obra: O homem que era quinta-feira: um pesadelo.
     Mas este é um pesadelo admirável, cheio de graça, de encanto, de fino humor como só Chesterton nos sabe dar. É um livro para ler em qualquer dia da semana, de manhã, à tarde, à noite, em tempo de férias, mas sobretudo quando em casa ou no emprego tivermos aqueles pesadelos reais que só uma boa leitura de este livro rapidamente supera.
      Este livro foi dedicado, com um longo poema, ao escritor inglês E. C. Bentley, velho companheiro de escola, e adaptado ao teatro pela cunhada do próprio Chesterton, tendo este redigido um prefácio que antecede a edição da versão teatral de esta novela. Foi colocado pela primeira vez na mão dos leitores em 1908 e, desde então, tem suscitado um interesse entusiástico, sempre renovado em todas as gerações, bem visível nas inúmeras traduções e contínuas edições. Mesmo entre nós, desde que foi publicado no final da primeira metade do século passado – curiosamente numa colecção intitulada Biblioteca dos Humoristas – até aos dias de hoje, tem colhido naturalmente as boas graças dos leitores, arrastados alegre e jovialmente pela espantosa imaginação e notável capacidade de efabulação do seu autor.
     A história que, tal como o enredo de um bom romance policial, não se pode contar, senão perdia a graça de que está imbuído da primeira à última página, tem dado origem a várias interpretações, embora Chesterton deixe subtilmente pistas para encontrarmos, no emaranhado da confusão deliciosa que a novela nos transmite, a solução correcta. É como se entrássemos num jogo passado num labirinto e tivéssemos de descobrir, ao mesmo tempo, como jogar sem cometer qualquer falha, à medida que procurávamos a saída vitoriosa. É um pesadelo que apetece ter, que apetece ler, que apetece sonhar. Sempre de uma actualidade feroz. E com G. K. Chesterton a olhar divertido para nós e a sorrir prazenteiro.