REGRESSO ÀS AULAS
Antigamente a escola era risonha e franca…
Acácio Antunes
No autocarro,
sentou-se ao meu lado um senhor com uma cara tão triste, tão triste, que só de
olhar para ele dava vontade de chorar. E foi nesse estado de ânimo que entrei
em casa, com a imagem de esse velho de bigode murcho a matraquear-me a cabeça e
as lágrimas, só de me lembrar dele, a saltar-me dos olhos, como se tivesse
vindo de um velório. Tinha acabado de tirar o casaco, quando senti bater à
porta. Estremeci, quase sem querer, imaginando que o diacho do velho me tinha
seguido, para se certificar do meu estado de ânimo e da minha capacidade de
choro.
Tive sorte. Em vez
da tristeza ambulante, saiu-me na rifa um velho companheiro do saudoso Liceu D.
João III, alegre e folgazão, que vinha tirar dois dedos de conversa e saber, de
forma naturalmente discreta, se ainda tinha aquela garrafita de Porto, ou
alguma alma gémea, que tão boa companhia nos fizera na semana passada.
Foi um bom
remédio. A tristeza foi desaparecendo à medida que se esvaziava a garrafa e ele
contava histórias do tempo do liceu. Dos colegas, dos contínuos mas, sobretudo,
dos professores. O professor de História era um senhor já de idade, que
escrevia artigos para um jornal da terra, e dava pelo nome de um conhecido
escritor italiano: o célebre autor de As minhas prisões. A rapaziada não
o levava muito a sério e nos pontos escritos, sabendo de antemão que nunca os
lia, aproveitava para fazer relatos de futebol, contar anedotas ou inventar
histórias do arco-da-velha. À cautela, lá ia respondendo, sempre de forma vaga
e difusa, à primeira questão, sobretudo na primeira página. Mas sem se esforçar
muito.
Ora sucedeu,
contava entusiasmado o meu amigo, que um dia o pai foi chamado ao reitor. Na
sala encontrava-se também o professor de História que se pôs a dizer que não
admitia que os alunos gozassem com ele e lhe faltassem ao respeito. Dera-se o
caso, verdadeiramente inédito, de ter lido todo o ponto do meu velho amigo do
liceu. O desgraçado tinha respondido à segunda questão – “ Descreve as
cerimónias do Feudalismo” – relatando, com grande vivacidade e abundante cópia
de pormenor, o último jogo da Académica no Estádio Municipal. Achou o mestre –
e muito provavelmente com razão – que a resposta era completamente inadequada e
verdadeiramente anacrónica. Mas muito mais do que isso, considerou-a uma
ofensa. O pai do infeliz aluno, concordando embora com o sábio professor, lá
foi desculpando o rapaz, dizendo que se calhar não era só ele que respondia
assim, que lesse o mestre também as outras provas… Que não! Teimava o
professor. Que as tinha lido todas e só ele, e apenas ele, cometera essa
afronta! E o pai do meu amigo lá tornava e retornava a pedir desculpa,
acrescentando que tivesse a certeza que o seu filho não voltaria a tomar essa
atitude.
À cautela, quando
chegou a casa, deu-se o mestre ao cuidado de ir, de facto, ler os outros pontos
dos rapazes. E não é que então, e só então, é que se deu conta do que há anos
vinham fazendo?
Mas ainda havia
mais. Vivia-se então na época de ouro das chamadas orais. O professor pegava na
caderneta, esse pequeno instrumento de suplício, folheava-a, pausadamente,
parando de quando em quando para ver a reacção do auditório, e disparava, de
repente, um número ou um nome, que era motivo de sobressalto no visado e de
alívio e de satisfação nos restantes. Ora este distraído mestre costumava
anotar nas folhas da caderneta o nome da pessoa amiga que lhe recomendava os
rapazes. Não se esquecia, assim, de quem lhe tinha feito o pedido e sempre era
mais fácil para dar as notas no final do período. Porém, um belo dia, para
espanto de toda a turma, acertando embora no número, enganou-se no nome,
trocando as linhas, e, sem se aperceber do erro, disse numa voz fanhosa que se
ouviu em toda a sala: “Vem hoje à lição o número cinco, Sua Excelência
Reverendíssima o Senhor Arcebispo-Bispo-Conde, D. Ernesto!”
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