quinta-feira, 30 de maio de 2013

CORAÇÃO DE PORTUGUÊS

   


  É este cheiro a terra húmida que me recebe e me abraça, me entra sorrateiramente pelas narinas adentro e segue em passo miudinho e atrevido para o coração, num misto de alegria e de profunda paz, de perfeita serenidade. Estou em Macau. Sinto-me como se fosse a minha própria terra. Sinto-me em casa. Olho em redor, quando ponho o pé em terra firme e vejo novos rostos que me lembram inevitavelmente velhos e queridos amigos que aqui deixei e me esperam ansiosos para um abraço à antiga, fraterno e bem português.
     Chego ao cair da tarde e entro na agitação de uma cidade cuja pressa parece sempre calma, numa cidade que nunca pára, dia e noite, mas em que o tempo tem um ritmo diferente, pausado e certo, sem correrias loucas nem vagares em demasia. Entro também nele e acerto o passo, nesse ritmo cadenciado e certo. E quando vou apressado pela rua fora, sinto o coração sereno e calmo; e quando o coração se agita por rever velhos lugares e amigos que não esquecem, ando mais devagar, passo a passo, para poder saborear completamente um momento que não quero perder, que tenho medo me fuja gaiatamente por entre os dedos.
     Estou numa cidade em que se cruzam povos de todo o mundo, que vejo passar por mim, numa babel de línguas em que o cantonês naturalmente predomina mas onde aparecem ainda, teimosamente, sons e palavras portuguesas. Vejo-os  nos autocarros, na rua, nos restaurantes, nas igrejas a falar a língua de Camões que aqui esteve e aqui viveu. São, como nós, lusíadas. Ou talvez mais. Embora tenham nascido no Oriente e aqui vivam e trabalhem. Foram eles que ao longo de sucessivas gerações criaram imorredoiros laços de amizade entre Portugal e a China. Que ainda hoje perduram na RAEM (Região Administrativa Especial de Macau). São os Macaenses.
     Olho para o lado e vejo a Alexandra Sofia a mostrar-me timidamente o seu livro (Filhos da Terra. A Comunidade Macaense, Ontem E Hoje,  Instituto Internacional de Macau, Macau, 2012). Sem razão para qualquer timidez. É a melhor e mais completa iniciação a este tema que conheço. De consulta indispensável e de divulgação obrigatória. Dá-nos uma visão perfeita, de quem a conhece por dentro, de quem a sente na alma, de esta extraordinária comunidade macaense. De uma comunidade que criou sólidas raízes no passado, nos fascina no presente e se projecta, assim Deus a ajude, pujante no futuro. Que extravasa de esta terra, que só parece pequena para quem não a vê com a alma aberta e grande, e corre pelo mundo fora ( Hong Kong, Sidney, São Paulo, Rio de Janeiro, Toronto, Vancouver, S. Francisco, Hillsborough (Califórnia), Lisboa) em comunidades que mantêm as ligações a esta cidade que, ainda hoje, a todos seduz e encanta.
      Através da celebração de festas genuinamente portuguesas, como o 10 de Junho, ou macaenses, como o 24 de Junho – dia da vitória sobre os invasores holandeses, em 1622 -, sem esquecer o Natal e o Ano Novo Chinês, é Macau que está  presente, por vezes com o seu patuá – dialecto próprio -, mas sempre com a sua riquíssima culinária no chá gordo, que é um festim para os olhos e um regalo para o estômago. Ele é o minchi, o tacho, o arroz gordo. Ele é a samussa, o chilicote, o pãozinho. Eles são os doces: ginetes, bebinca de leite, bolo menino. Meu Deus, não há dieta que aguente! Nas horas vagas, recomenda-se a leitura de um bom livro. E que autor melhor, e maior, do que o macaense Henrique Senna Fernandes, um dos grandes cultores da língua portuguesa no século XX?! São assim os macaenses, apegados à terra que os viu nascer, fazendo sempre a ponte entre o Oriente e o Ocidente, entre o passado que não esquecem e o futuro que constroem.
     Leio-lhes na franqueza do olhar com que me falam o velho e nobre coração de português. E quando os vejo passar, macaenses de muitas gerações ou portugueses que há anos aqui vivem e diária e honestamente labutam nesta cidade que tão generosamente os acolheu e agora sentem também como terra própria e sua, sinto algo dentro de mim que não sei bem como descrever. É que trazem a Pátria consigo, guardam-na dentro do peito.

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