Parece que é, de novo,
à porta da velha Igreja de Santa Cruz que me encontro com Monsenhor Augusto
Nunes Pereira. Figura inesquecível da cultura coimbrã, com o seu ar quase
tímido de quem pede desculpa pelo seu muito saber no domínio da arte, artista
ele próprio de sólidos recursos, moderno pioneiro, entre nós, da nobre arte da
xilografia, pouco, infelizmente, deixou impresso para lição e proveito dos seus
muitos admiradores e amigos. Mas uma obra – que na altura comentei no velho O
Primeiro de Janeiro, com a amizade agradecida do Autor – merece que aqui se
sente, ao nosso lado, nesta tertúlia a que um bom café não faltará, por certo,
como o antigo e saboroso da animada e velha A Brasileira. Refiro-me,
naturalmente, a Do Cadeiral de Santa Cruz que, já neste século, mereceu
uma segunda edição a cargo da Câmara Municipal de Coimbra.
Esta obra é
enriquecida por um notável conjunto de riquíssimas xilogravuras que reproduzem
os motivos que lhe servem de estudo e que nos dão conta do valor de artista
exímio que foi Monsenhor Augusto Nunes Pereira. Discípulo de Pietro Parigi
(1892-1990), um autêntico mestre da xilografia italiana de “Novecento”, artista
florentino que foi amigo de notáveis escritores como Piero Bargellini, Carlo
Betocchi ou Nicola Nisi. E também ele de uma modéstia fora do vulgar e de uma
grande riqueza espiritual, possuía Pietro Parigi a força escultórica de um
Donatello e de um Miguel Ângelo, sendo única a sua arte de xilógrafo, e, por
isso, foi considerado ao mesmo tempo um clássico e um moderno sem igual.
Mas neste livro
sobressai ainda a sólida cultura iconológica do seu Autor, interessado e atento
leitor de Erwin Panofsky – tantas conversas tivemos sobre este assunto - , que
era então para muitos um completo desconhecido. Através dele, e da distinção
que soube fazer na prática entre iconografia e iconologia, veio, mais uma vez,
chamar a atenção para a importância cultural e artística do Catolicismo que
nunca ficou fechado entre quatro paredes mas deu sempre sentido e forma à nossa
cultura, porque extravasou para o quotidiano que dele se alimenta e dele vive,
em mil modos e formas que todos conhecem, mas alguns tentam, por vezes,
teimosamente escamotear e esconder.
Desde Aby Warburg,
professor da Universidade de Hamburgo e mais tarde em Londres, e sobretudo
Erwin Panofsky, que o estudo e análise das imagens adquiriu um valor
excepcional. Panofsky parte do princípio de que numa obra de arte a forma não
pode separar-se do conteúdo, não é um mero suporte visual, tem um sentido que a
ultrapassa e que se manifesta a três níveis: 1) a forma material; 2) a ideia
convencional e o 3) significado intrínseco. O primeiro, pré-iconográfico, serve para identificar
as formas puras (por exemplo, um homem pregado numa cruz); o segundo, iconográfico, refere o conteúdo
secundário ou convencional que nos permite identificar as imagens, histórias ou
alegorias por meio de fontes literárias ( nesta caso o Evangelho); por último,
o valor iconológico, que Panofsky
defende como essencial, trata do conteúdo intrínseco da obra, enquanto comporta
valores simbólicos. Ora, é precisamente isto que nos dá Monsenhor Augusto Nunes
Pereira nesta obra, ao descrever e analisar cuidadosamente os vários elementos
que compõem o cadeiral de Santa Cruz.
Para tornar
compreensível a iconografia, Panofsky deu uma vez o seguinte exemplo:
coloquemo-nos na situação de um bosquímano que contempla um quadro da Última
Ceia. Não vê nada mais do que uma refeição em comum que parece representar algo
de importante. Para compreender o sentido do quadro o nativo deverá familiarizar-se
com a narrativa evangélica. Ora quando vemos obras de arte cujos temas
ultrapassam o âmbito das ideias que constituem a formação intelectual média
actual, todos somos bosquímanos.
É natural que o
leitor, atento e amigo, faça agora uma pausa para sorver mais um pouco de café
que, por minha culpa, minha própria culpa, ficou a arrefecer indevidamente na
respectiva chávena. Para me penitenciar e aligeirar este breve arrazoado, assim
o terminando de vez, peço licença para lhe contar um episódio que ocorreu com Monsenhor
Augusto Nunes Pereira e é bem revelador do seu espírito franciscano. Quando se
encontrava de férias, foi a sua casa alvo de uma visita, não solicitada
previamente, de dois membros do Sindicato de Ladrões, Larápios, Gatunos e
demais Ofícios Correlativos que lhe levaram um baú que continha, não só os
apetrechos da sua arte de xilografia, mas várias obras já concluídas e outras
em fase de conclusão. Provavelmente porque não tinham realizado o curso final
com bom aproveitamento, os membros do Sindicato tanto barulho fizeram, primeiro
a arrombar a porta e, depois, a transportar o baú, que os vizinhos, assim
alertados, avisaram a polícia. Fugiram os ladrões, deixando na rua o pesado baú
e, avisado pelas autoridades, regressou sobressaltado a casa o nosso monsenhor.
Um polícia mais curioso reparou, porém, que o baú tinha escrito na tampa a
palavra RASA e perguntou ao nosso
querido e santo amigo o que significava tal palavra, Ao que este, de modo
tímido, respondeu: - Recomendado
a Santo António!
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