Quando as casas
eram suficientemente grandes para nos podermos espalhar calmamente por todas as
divisões, que normalmente eram muitas, escolhia-se o sótão como reserva natural
de arrumações, onde tudo o que já não era imediatamente útil, mas poderia ainda
um dia vir a ser necessário, ficava invariável e caoticamente desarrumado. O
sótão era, assim, o local mágico e secreto – secreto, porque no fundo ninguém
sabia de facto o que lá estava – que nos atraia desde crianças e onde nos
refugiávamos em busca de livros perdidos e esquecidos, jogos meio desfeitos ou
brinquedos fora de moda que nos abriam, de par em par, a enorme porta da
fantasia pela qual entrávamos, ligeiros e contentes, numa nova aventura, perdidos
no tempo e no espaço. Hoje, as casas são pequenas: um simples andar na confusão
de um prédio, a que por vezes se junta uma garagem que era suposto servir para
guardar o automóvel mas que acaba por substituir o velho sótão, mais confusa e
caótica do que este.
Há frases meio
tolas. Diz-se que o saber não ocupa lugar. Mas os livros ocupam, e muito. Nas
casas antigas, em que alguns de nós ainda fomos criados, os livros que já não
estavam a uso subiam as escadas e iam dormir para o sótão. Hoje, como isso já
não é possível, ficam fechados na garagem, a dormir como podem, quase ao
relento. No apertamento do meu apartamento tive também de fazer o mesmo: enchi
a garagem de estantes e acomodei cuidadosamente os livros que não podia ter no
escritório ou que na altura não me eram tão úteis. De vez em quando pareço um
rato trocador a levar livros escada a cima, a trazer livros escada a baixo.
Talvez por isso me tenha aparecido há dias na minha garagem-biblioteca um gato,
um gato leitor.
Estava eu
serenamente entretido nas minhas arrumações bibliófilas, quando um gato me
entra atrevidamente pela porta escancarada e, com olhar meigo e calmo, me
cumprimenta serenamente: “Miau!”. Temeroso de que me fizesse alguma tropelia
nalguma obra mais valiosa, respondi-lhe: ”Podes entrar, mas não fazes nenhuma
asneira. Está bem?” O gato, educadamente – via-se que era de boas famílias -,
respondeu com um novo “miau!” e avançou para a secção de romances. Do sítio
onde estava não o via, mas confiei no bichano que me pareceu atilado e desejoso
de se instruir. Via-se pelo olhar atento e brilhante que não era um analfabeto
encartado como muitos humanos que olham para os livros como dantes se olhava
para os leprosos: com repulsa e nojo. Entretido como estava, quase me ia
esquecendo do meu amigo gato leitor. Mas, às escondidas, sem que ele me vise,
espreitei por entre duas estantes e pus-me a observá-lo. Olhava com muita
atenção para os romances de Camilo, enquanto lambia as patitas. Fiquei
satisfeito; não era só um gato culto, era também um gato limpo. Quando acabei,
chamei-o e, obedientemente, saiu à minha frente, para poder fechar a porta.
Quase todas as
vezes que ia à minha garagem-biblioteca o gato leitor, estivesse onde
estivesse, vinha, feliz e contente, ter comigo. Ia sempre para a mesma secção.
Gostava de romances e de livros de aventura. Vi-o um dia, embevecido, a olhar
para o Dom Quixote, desejoso, quem sabe, de calcorrear terras de
Espanha, atrás do cavaleiro magricela e do gordo Sancho Pança. É curioso que
não ligava muito aos livros de ensaios, de História, de Filosofia ou de
matérias menos próprias para felinos. Contentava-se, e bem, com os bons e
velhos romances que o distraiam e o levavam a passear, pelo menos na
imaginação, por outras terras e paisagens. Era sempre calmo e educado e fez da
minha biblioteca a sua biblioteca. Quase se não dava por ele, embora
cumprimentasse sempre quando entrava e, creio, que também quando saía. Digo,
creio, porque por vezes estava de tal maneira entretido que não me apercebia
que o meu amigo gato leitor já se tinha ido embora, certamente chamado ao
cumprimento de outros afazeres, menos cultos, mas também não menos importantes.
Até que um dia,
empenhados os dois no desenvolvimento harmónico da nossa formação cultural,
humana e felina, me esqueci, pura e simplesmente, do meu gato leitor. Enquanto
ele continuava entretido a ler alguma obra que, pelos vistos, muito o
interessava, sem dar conta fechei a porta da garagem-biblioteca e regressei ao
meu escritório, levando, é quase certo, algum livro na mão de que necessitava
para o meu estudo ou investigação. Mas nem sequer o abri porque me lembrei que
tinha de sair para tratar qualquer assunto urgente e de que já me estava a
esquecer. O livro ficou assim esquecido no escritório e o gato leitor esquecido
na garagem.
Quando regressei a
casa soube que um vizinho tinha andado à procura do seu gato – o meu gato
leitor – e, ao ouvi-lo miar da minha garagem, vindo cá a casa pedir à empregada
o favor de lhe abrir a porta para recuperar o seu bichano que, pelos vistos,
também se distraiu com a leitura e não deu conta da minha partida. Mas depois
de esse incidente não ficámos zangados.
O meu amigo felino
voltou a frequentar a biblioteca. Mas agora é ele que, sorrateiramente, vem, de
vez em quando, ver se ainda lá estou, sobretudo quando faço pouco barulho, não
vá ficar outra vez esquecido, preso, sozinho e, sobretudo, sem luz. Porque ele
não gosta de ler às escuras…
Sem comentários:
Enviar um comentário