
Há dias, quando
estava a ler na minha biblioteca, adormeci profundamente. Acordei,
sobressaltado, com um barulho estranho. E vi que nela estava instalada uma
perfeita confusão, com livros fora do sítio, livros no chão, livros amontoados.
Prosadores e poetas, filósofos e teólogos. Era, em suma, toda a cultura
europeia que ao longo de anos consegui guardar zelosamente e agora, sem mais
nem menos, me esvaziava as estantes e corria, veloz, atropelando-se uns aos
outros, para junto de umas prateleiras, na minha estante reservada, onde estão
as obras do Cardeal Joseph Ratzinger/Bento XVI. Parecia que todos queriam ouvir
a sua voz, escutar a sua palavra, colher os seus ensinamentos, fixar para
sempre a sua última lição. E, no meio de toda esta febril agitação, chegaram-me
aos ouvidos os primeiros acordes do Concerto para piano e orquestra nº20 em
Ré menor K . 466 de Wolfgang Amadeus Mozart. Nem as minhas músicas ficaram
sossegadas. Também elas vieram juntar-se aos livros e aos seus autores,
certamente com a mesma intenção.
Impossível referir
todos os autores que quiseram escutar a palavra do maior teólogo alemão de todos os tempos, como lhe chama o seu
biógrafo Peter Seewald. Chega-me aos ouvidos um murmúrio de vozes, como se
todos desejassem, quase ao mesmo tempo, fazer perguntas e colher lições, mas
logo vem um silêncio respeitoso, quebrado suavemente pela voz serena e sabedora
de um dos maiores intelectuais dos últimos séculos que assim se sobrepõe a tudo
e a todos e todos escutam como discípulos gulosos da lição do seu querido e
velho mestre. Mas não são apenas escritores. Descobri, no meio de tantas obras
que se empilhavam em direcção às prateleiras da minha estante reservada, uma
especial e fora do vulgar: um álbum de um pintor. E era esse pintor que eu via
agora com o livro na mão. Por iniciativa da sede italiana, em Milão, de The
Foundation of Improving Understanding of the Arts ( Fondazione per Coltivare la
Comprensione dele Arti) foi editado em 1998 um álbum que reunia de modo
“involuntário”, o pintor americano William Congdon (1912-1998) e o Cardeal
Joseph Ratzinger: O sábado na história. As pinturas religiosas do
primeiro, sobre este tema, eram antecedidas de cinco meditações sobre a Semana
Santa, da autoria do cardeal alemão. Constituem ambas, ainda hoje, um bom
motivo para ligarmos a arte moderna e a boa e sólida teologia. Era essa obra
que sobressaia a todas as outras.
Mas eis que reparo
na presença de um grupo de intelectuais contemporâneos que, na sequência da
brilhante intervenção do Papa Bento XVI na Universidade de Ratisbona, a 2 de
Setembro de 2006, decidiu colaborar numa obra colectiva, em sua homenagem, e
significativamente intitulada Deus salve a razão. A edição original saiu
em Itália, na conhecida editora Cantagalli de Siena – belíssima Siena -, em
2007. Rapidamente traduzida em francês e em castelhano, foi enriquecida nesta última com a colaboração de
novos autores. Entre nós, como de costume, não houve qualquer edição. Apenas
silêncio, escuridão e nada mais. Ora são esses autores, de variadas
proveniências, que vejo atentos e desejosos de, uma vez mais, sem mácula nem
medo, com todo o respeito e admiração, mesmo quando discordam, marcar de novo
presença: o filósofo materialista espanhol Gustavo Bueno, da Universidade de
Oviedo; o egípcio Wael Farouq, professor de língua árabe na Universidade
Americana do Cairo e de ciências islâmicas na Faculdade copto-católica; o
filósofo e ensaísta francês André Glucksmann; o catedrático de Literatura
Espanhola da Universidade de Alcalá de Henares, Jon Juaristi, convertido ao
judaísmo; o prestigiado intelectual palestiniano Sari Nusseibeth, professor de
Filosofia e Reitor da Universidade árabe
Al-Quds de Jerusalém; o sacerdote católico Javier Prades, catedrático de
Teologia Dogmática da Faculdade de Teologia San Dámaso de Madrid; o filósofo
alemão, antigo professor de várias universidades, Robert Spaemann; e o
conhecido jurista de origem judaica, J.
H. H. Weiler, natural da África do Sul e professor da Universidade de Nova
Iorque.
Como fundo,
continuo a ouvir música de Mozart. Vejo, entretanto, que se agita um livro
sobre o amontoado de todos os outros. É um livro de John Henry Newman, do
cardeal inglês recentemente beatificado por Bento XVI: a famosa Carta ao
Duque de Norfolk. E sinto que se estabelece, de imediato, um vivo diálogo
entre o Cardeal Joseph Ratzinger/Bento XVI e o cardeal oratoriano, antigo e
importante elemento do chamado Movimento de Oxford. Todos sabemos do que trata
esta obra. É, ainda hoje, um indispensável ponto de partida para o estudo,
sério e honesto, da doutrina da consciência, tema particularmente caro a este
Papa e sobre o qual escreveu muitas e luminosas páginas, prenhes de actualidade
e que merecem, por isso, ser de novo lidas e meditadas. E, sobretudo, servem
também para melhor compreender a sua vida e as recentes atitudes do Santo
Padre.
O concerto entra
agora no último andamento. Não sei quem está ao piano, se é o próprio Mozart,
se é o próprio Papa. Nisto, salta um livro da prateleira. Faz-se um silêncio
profundo. É a voz de Bento XVI que se ouve. É, de certeza, a sua última lição.
Na oração, em cada época da história, o
homem considera-se a si mesmo e à sua situação diante de Deus, a partir de Deus
e em vista de Deus, e experimenta que é criatura carente de ajuda, incapaz de
alcançar sozinho o cumprimento da própria existência e da própria esperança. O
filósofo Ludwig Wittgenstein recordava que “rezar significa sentir que o
sentido do mundo está fora do mundo “. Na dinâmica de esta relação com quem dá
sentido à existência, com Deus, a oração tem uma das suas expressões típicas no
gesto de se pôr de joelhos. É um gesto que contém em si uma ambivalência
radical: com efeito, posso ser obrigado a pôr-me de joelhos – condição de
indigência e de escravidão – mas posso também inclinar-me espontaneamente,
declarando o meu limite e, portanto, o facto de que tenho necessidade do Outro.
A Ele declaro que sou frágil, necessitado, “pecador”.
Bento XVI podia
lembrar de novo, como o fizera noutro texto, o que disse o poeta e dramaturgo
francês Paul Claudel, quando, velho e cansado, visitou a Itália, sendo visível
a sua dificuldade em locomover-se: ”Custa-me a andar, mas ainda posso ajoelhar”.
Já não oiço a
música de Mozart. Está um rádio ligado. É fim de tarde. Rezam o terço em
Fátima. O sacerdote pede para rezarmos pelo Papa que vai recolher a um
convento. Vou rezando baixinho e pedindo a este sábio e santo Papa, que dentro
em breve ficará em solidão plena a sós com Deus, reze também por mim e pelos
meus, reze por todos nós.
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